Quando o médico não especialista precisa conversar sobre saúde mental
Por Doutor Fernando Fernandes
O Brasil ocupa posição
preocupante entre os países com maior prevalência de transtornos ansiosos e
depressivos mundialmente, conforme dados da Organização Mundial da Saúde
(OMS)¹. Estima-se que mais de 18 milhões de brasileiros convivam com
transtornos de ansiedade, um número crescente que posiciona esta questão como
um dos principais desafios de saúde pública nacional¹. Paradoxalmente, a
disponibilidade de profissionais especializados permanece significativamente
limitada: apenas 6,6 psiquiatras para cada 100 mil habitantes², proporção
manifestamente insuficiente diante da elevada prevalência dessas condições na
população.
Um estudo longitudinal
conduzido através do banco de dados de provedores e operadoras de saúde no
Brasil, que acompanhou pacientes com diagnóstico de ansiedade durante quatro
anos, demonstrou que a psiquiatria raramente constitui a primeira especialidade
médica procurada por esses indivíduos. Os dados revelaram que estes pacientes
buscaram inicialmente atendimento em diversas especialidades médicas, com
destaque para cardiologia, ginecologia, oftalmologia, ortopedia e, apenas
posteriormente, psiquiatria³.
Esta trajetória assistencial
justifica-se, entre outros fatores, pela natureza multissistêmica dos sintomas
apresentados pelos transtornos mentais. Manifestações como dor torácica,
taquicardia, dispneia, náuseas, dor abdominal, constipação, lesões cutâneas,
blefarospasmo, cefaleia e mialgia representam apenas uma amostra dos sintomas
físicos que podem direcionar os pacientes a diferentes especialidades médicas,
frequentemente mascarando a etiologia psiquiátrica subjacente.
O subdiagnóstico dos
transtornos psiquiátricos em serviços não especializados constitui fenômeno
amplamente documentado na literatura médica, resultando em considerável atraso
diagnóstico. O mesmo estudo evidenciou que 45% dos pacientes convivem com
sintomatologia por dois anos ou mais antes de receberem o diagnóstico correto,
sendo muitos inicialmente tratados de forma inadequada³. Essa realidade decorre
do fato de que queixas somáticas ou condições crônicas podem efetivamente
camuflar a origem mental dos sintomas apresentados.
O primeiro desafio
relacionado aos transtornos mentais reside precisamente no processo
diagnóstico. Um fator crucial para essa dificuldade é que o motivo da consulta
médica frequentemente não corresponde ao transtorno propriamente dito, mas sim
aos sintomas inespecíficos por ele gerados. Acrescenta-se a isso o fato de que
profissionais de outras especialidades raramente recebem treinamento adequado
para identificar transtornos psiquiátricos em sua prática clínica.
Além da limitação formativa,
é natural que médicos, após anos dedicados ao aprofundamento em área
específica, desenvolvam vieses cognitivos que podem interferir na prática
médica e no reconhecimento de doenças mentais⁴. Entre esses vieses destacam-se: o viés do especialista,
caracterizado pela tendência de interpretar sintomas exclusivamente através da
perspectiva de sua especialidade, desconsiderando causas externas ao seu campo
de atuação; o viés de confirmação, manifesto pelo foco seletivo em evidências
que validam a hipótese diagnóstica inicial, desprezando dados que sugiram alternativas;
o viés de disponibilidade, expresso pela supervalorização de doenças mais
frequentes ou marcantes em sua experiência clínica, negligenciando diagnósticos
menos evidentes; e o viés de ancoragem, caracterizado pela fixação na primeira
hipótese diagnóstica como referência predominante.
Diante desse cenário,
torna-se fundamental que médicos não psiquiatras desenvolvam consciência acerca
de seus vieses cognitivos e mantenham vigilância para sinais de transtornos
mentais em seus pacientes, considerando que essas condições podem manifestar-se
através de sintomatologia cardiológica, neurológica, gastroenterológica, entre
outras. Isso não implica que todo profissional de saúde deva especializar-se em
psiquiatria, mas sim compreender que o organismo humano constitui um sistema
integrado e que, a divisão entre saúde física e mental é meramente
didática.
Embora não constitua sua
área de atuação principal, todo profissional de saúde exerce papel fundamental
na escuta inicial e na triagem adequada dos pacientes. Reconhecer que os
sintomas podem ter múltiplas origens e manter postura receptiva representam passos
essenciais para garantir que o paciente receba atenção apropriada e seja
encaminhado, quando necessário, para cuidado especializado psiquiátrico. Esta
abordagem multidisciplinar e integrada constitui elemento indispensável para o
enfrentamento efetivo dos desafios impostos pelos transtornos mentais em nosso
meio.
*Doutor Fernando
Fernandes é psiquiatra formado pela USP, presidente do Conselho Científico da
ABRATA (Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos
Afetivos), e supervisor do grupo de Transtornos do Humor do Instituto de
Psiquiatria da USP.
Referências:
1.
Instituto de
Psiquiatria da USP. Saúde mental no Brasil: dados e panorama. Abril, 2024.
Disponível em https://ipqhc.org.br/2024/04/
2.
Departamento de
Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Demografia Médica no Brasil. Brasília, DF, 2025.
3.
Matos MASM, Ogata A, Gondo CM, Dieckman L, Stefani S,
Tung TC, et al. The impact of patients with generalized anxiety disorder in the
Brazilian Private Healthcare System: a claim database study with expert's
perspective. J Bras Econ Saúde.
2023;15(1):32-38.
4.
CS Webster, S Taylor, JM Weller. Cognitive biases in
diagnosis and decision making during anaesthesia and intensive care. 2021. Disponível em https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/
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