O Leviatã de terno e gravata: literatura distópica e realidade
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| Foto: Divulgação |
Triboulet era o
bobo da corte que serviu ao rei Luís XII da França. Ele se tornou uma figura
lendária por sua inteligência e sagacidade. Com liberdade para criticar os
excessos reais por meio do humor, Triboulet frequentemente ultrapassava os
limites e foi sentenciado à morte após uma piada contra o rei. No entanto, ao
ser autorizado a escolher a forma que ia morrer, respondeu: “Escolho morrer de
velhice”. A piada divertiu o rei. A esperteza lhe salvou a vida, garantindo seu
exílio em vez da execução. Sua história inspirou a peça “O Rei se Diverte”,
de Victor Hugo.
Aqueles que
ouvem essa história focam no aspecto cômico da piada do bobo da corte, sem
observar o maior absurdo do conto: um ser humano condenando outro à morte por
causa de uma simples piada. A piada é um tipo de ficção, por assim dizer. O
cenário não é real, mas aquilo que ele quer criticar é.
Antes de
explicar o porquê de o bobo da corte ser tão perigoso, é necessário elucidar o
que a ficção representa. A ficção é a espada que o bobo usa para espetar o
Tirano, à vista de todos na corte dos nobres com o claro objetivo de causar
espanto, chamar atenção e denunciar o que ele realmente é: um tirano. É como os
espelhos das casas malucas do circo, onde se pode ver algo trêmulo, maior,
menor, mais largo ou mais fino do que realmente é. No final, a figura ainda
pertence à pessoa na frente do espelho.
A realidade
distorcida pela espada do bobo da corte mostra o Tirano munido do aparato
estatal para fazer valer sua vontade soberana. Uma vontade que quer matar um
bobo por usar sua liberdade de expressão contra o tirano. Nesse cenário, leis
injustas tomam lugar, a interpretação sobre elas muda o tempo todo, e o
dinheiro dos impostos é usado para beneficiar um seleto grupo.
Cada vez mais, o
Leviatã cresce de tamanho proferindo discursos de preocupação com a nação, com
os problemas sociais, ou com a moral e os bons costumes. Mas o discurso é
apenas uma ferramenta para que a meta principal seja atingida: esticar seus
tentáculos para todos os ramos da vida do cidadão. Seu desejo é puramente o
poder para submeter todos ao seu controle.
É possível ver
isso em “1984”, quando o “bobo da corte” da vez, George Orwell, critica regimes
fascistas que delimitam cada segundo da vida do cidadão. O autor denuncia
também cada uma das pessoas que são coniventes com o mal, que apoiaram tais
regimes e constantemente contradizem os próprios pensamentos para se encaixarem
na narrativa do Partido.
Em outro contexto,
sem se prender unicamente aos clássicos, percebe-se como “Jogos Vorazes” é uma
ficção que, apesar de ter elementos absurdos, descreve perfeitamente o mundo
atual. Suzane Collins, a autora, aponta para a forma como a classe burguesa
subjuga a classe trabalhadora, cujos frutos do seu trabalho são concentrados
nas mãos de poucas famílias da Capital e como o sistema retroalimenta a
dominação desumana por meio de torneios de matança entre jovens e crianças para
o divertimento da nobreza. A imagem está distorcida pelo espelho da ficção, no
entanto, a essência da mensagem permanece intacta. A crítica à desigualdade
social e miséria perpetuados pelo Estado. Nada mais atual que isso.
No final, os
autores dos grandes clássicos eram apenas pessoas comuns que vestiram a
fantasia de bobo da corte para espetar o Leviatã de maneira teatral.
Infelizmente, alguns tiveram o mesmo destino de Triboulet. O escritor Ievguêni
Zamiátin, por exemplo, foi preso e exilado diversas vezes na União Soviética,
mas seu exílio final, em 1931, foi voluntário: ele solicitou a Stalin permissão
para viver em Paris após ser proibido de publicar no país, especialmente por
causa de seu romance “Nós” e suas críticas ao regime soviético. É
interessante observar como a obra de Orwell ficou mais popular no mainstream que
a de Zamiátin, apesar de “1984” ter se inspirado em “Nós”.
Mas por que
vemos a história se repetir em várias épocas diferentes? Porque o Leviatã não
suporta ser contrariado.
Ele é orgulhoso
demais. Receber críticas significaria que o Monstro no trono de marfim está
disposto a mudar, o que não irá acontecer. Triboulet era tão perigoso porque a
sua maior arma é uma piada, ou seja, uma informação que chegou rápido demais
aos ouvidos do espectador, sem se preocupar quem irá atropelar. Assim é a
ficção. É o instrumento que as massas têm para zombar do poder. Sabendo que não
pode mudá-lo sozinho, o cidadão comum usa de um universo fictício para ferir a
moral do Tirano, instigar a plebe a se revoltar, a praticar desobediência civil
e, até mesmo, a vandalizar bens públicos, como foi o caso de “Laranja Mecânica”
no Reino Unido. A ficção é o fogo que acende a chama do pensamento de mudança,
que, por sua vez, provoca uma revolução.
Obviamente, o
Tirano odeia mudança. O clássico brasileiro “Capitães da areia”, de Jorge
Amado, é prova disso. A obra foi censurada pela ditadura do Estado Novo em
1937, tendo 800 exemplares do livro queimados em praça pública, igual o regime
nazista na Alemanha. A ficção “O Sol é para todos”, de Harper Lee, também foi
censurada em 2021 em escolas públicas dos estados de Oklahoma e Carolina do
Norte por falar sobre a injustiça racial nos Estados Unidos. O Leviatã quer que
as pessoas estejam do seu lado, mesmo que tenha que cegá-las para isso. Por
isso, é possível ver até hoje ataques contra a ficção. Hoje, o Leviatã usa
terno e gravata, ele usa a lei e a Constituição para dizer o que cada um deve
pensar e proibir ficções com o pretexto de proteção ao bem-estar social.
Mas não se
engane. O Tirano não é somente uma pessoa no singular sentada em um trono
literal. Tampouco é somente a representação mitológica do Estado. Os tentáculos
do Monstro abrangem todos aqueles que possuem uma certa obsessão pela
imposição, ou seja, pelo pensamento simplório de “eu não gosto da ideia X,
portanto, as pessoas deveriam ser proibidas de falar sobre X”. A vontade de
ditar a conduta correta e punir todos os discordantes. Este ódio contra o
diferente é o que continua elegendo Tiranos que se utilizam deste sentimento
para prender seus opositores. Portanto, é sempre relevante relembrar: a ficção
não causa a mudança, mas as pessoas.

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