Ser patinho feio ou belo cisne: eis a questão
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| Foto: Divulgação |
Francisco
Neto Pereira Pinto
Penso mesmo que
todo mundo deveria ler o conto infantil “O patinho feio”, de Hans Christian
Andersen. Embora publicado há quase 200 anos, ele permanece atual ao provocar
reflexões sobre como nos tornamos humanos — ou seja, como nossa identidade é
construída nas e a partir das relações que estabelecemos com aqueles que nos
são mais próximos, como família e vizinhança, e com a sociedade em geral.
Neste artigo,
discutimos a trajetória de transformação do chamado patinho feio em um belo
cisne, e o que podemos aprender sobre como estamos formando as novas gerações.
A
jornada do patinho feio e a transformação de sua identidade
O patinho feio
era o sexto da sua geração de irmãos. Os cinco primeiros filhotes foram
saudados pela mamãe pata e pela vizinhança como lindos patinhos, mas o sexto
foi considerado feio, horrível, estranho e, até mesmo — como disse uma pata
velha — filho de peru, o que o tornava ilegítimo. O
patinho resolveu fugir daquele convívio e iniciar uma
jornada mundo afora, marcada por rejeição e sofrimento.
Um ponto de
virada em sua história ocorreu quando, em um belo dia de primavera, ao
pousar em um lago, foi recebido de maneira afetuosa e reverente por
três belíssimos cisnes mais velhos. Ao se olhar no espelho da água, não
viu mais um pato feio e desajeitado, mas sim um belo cisne. O
que teria mudado: foi ele ou foi seu modo de se enxergar? O que
aprendemos com sua experiência?
A gente
se enxerga com os olhos dos outros
Ao final da
leitura do conto, percebemos que o patinho sempre foi ele mesmo — claro que se
desenvolveu fisicamente, mas não houve uma transformação de espécie. O fato de
se achar feio estava relacionado à forma como era visto por sua família,
vizinhança e por todos que encontrou em seu caminho. Se tivesse sido amado e
admirado desde o nascimento, certamente a imagem que tinha de si seria outra.
O
estádio do espelho e a formação da identidade
Essa é a jornada
de todos nós. Ninguém escapa de se olhar pelo olhar dos outros. Jacques Lacan,
psicanalista francês, em seu famoso texto “O estádio do espelho como formador
da função do eu”, explica como nos tornamos humanos: é a relação que temos
inicialmente com nossos cuidadores e, depois, com outras pessoas e com a
sociedade, que estrutura nossa identidade e a forma como nos enxergamos.
Antes mesmo de
nascer, parte de nossa existência já é antecipada: “é menino ou menina”, diz o
médico ao mostrar a tela do ultrassom, ou os próprios pais ao interpretar o
exame de sexagem fetal. Ao nascer, o bebê recebe um nome, com o qual depois irá
se identificar.
Como explica o
psicanalista Jorge Forbes, ninguém escolhe o próprio nome. Porém, assume esse
nome como representante de si. Imagine uma sala de aula, quando o professor faz
a chamada. Ao ouvir seu nome, a pessoa responde: “sou eu”. Isso mostra como
aquilo que recebemos dos outros — especialmente das pessoas mais importantes
para nós — influencia profundamente a percepção que temos de nós mesmos.
Aprendemos a nos
amar e apreciar quando somos amados e apreciados. Quando recebemos desprezo e
ódio, infelizmente, a tendência é nos desprezarmos e nos odiarmos. Felizmente,
o patinho encontrou quem o admirasse, e esse encontro foi determinante para que
seu olhar sobre si também se transformasse. Pela primeira vez, ele se sentiu
bonito — e ficou radiante de alegria.
O que os
espelhos estão mostrando?
O patinho feio
nos representa hoje: como indivíduos e como coletividade. Para pais e
cuidadores, em uma sociedade competitiva, de alto desempenho, que cultua a
perfeição e a felicidade como valores supremos, uma pergunta é essencial: o que
as crianças que cuido veem no espelho?
Amor nunca é
demais — embora, é claro, isso não signifique atiçar orgulho ou vaidade. E o
que mostra o grande espelho da cultura, do qual ninguém escapa? Como ficam as
representações das pessoas com deficiência, negras, indígenas, pobres, do campo
e tantas outras enquadradas historicamente
Ser um patinho
feio ou um belo cisne não depende apenas de boa vontade ou esforço pessoal, mas
também das construções coletivas. Que o conto “O patinho feio” continue
ajudando a nós e às gerações futuras a construir espelhos mais gentis e
acolhedores.
*Francisco Neto Pereira Pinto é professor
universitário e psicanalista, além de escritor de obras infantis como “O menino
que selecionava sabores” e “Olha aquele menino, mamãe!”. Marido e pai de dois
meninos, ele utiliza a literatura para contribuir para a criação dos filhos e
de exercitar a paternidade.

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