Remédio não é cosmético: o alerta sobre o uso de medicamentos contra a obesidade
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| Foto: Divulgação |
Em maio, o
Brasil recebeu mais um representante de uma classe de medicamentos que já
provocou furor no mundo todo: o Mounjaro, nome comercial do Tirzepatida, uma
nova e potente promessa para o tratamento da obesidade. A chegada desse remédio
reacende uma discussão que está longe de ser nova — e que, inclusive, já
estampava capas de revista há mais de uma década. Quem não se lembra da edição
da Veja, de setembro de 2011, anunciando um remédio que fazia perder “sete,
dez, doze quilos” como se fosse mágica? Na ocasião, o foco era a liraglutida, o
primeiro grande nome entre os medicamentos que ativam os receptores de GLP-1,
imitando um hormônio intestinal responsável por regular a glicose e o apetite.
Naquela época, a
liraglutida ainda era vista como uma inovação para o tratamento do diabetes
tipo 2, com um “efeito colateral” promissor: a perda de peso. Não demorou para
que a comunidade científica passasse a investigar esse potencial. De forma
responsável, ensaios clínicos mostraram que a liraglutida — e, depois, a
semaglutida, presente no Ozempic e no Wegovy — também poderiam ser usados com
segurança e eficácia no tratamento da obesidade.
Mas é importante
frisar: esses medicamentos não são “remédios para emagrecer”. Eles são, antes
de tudo, remédios para tratar doenças. Diabetes e obesidade são condições
crônicas, com impactos metabólicos, cardiovasculares e ortopédicos bem
documentados. Tratar a obesidade não é o mesmo que perseguir um corpo magro por
razões estéticas. Estamos falando de intervenções que reduzem o risco de morte,
melhoram a apneia do sono, aliviam dores articulares e transformam a qualidade
de vida.
Infelizmente,
esse não é o discurso que costuma circular nas redes sociais. Nos últimos anos,
vimos crescer uma febre em torno do “emagrecimento rápido”. Influenciadores
exibem seus resultados com Ozempic como se fosse um suplemento fitness,
clínicas oferecem “protocolos de verão” com GLP-1 como se fossem cosméticos, e
pacientes compram remédios de uso controlado como quem escolhe um shake detox
na prateleira. Tudo isso embalado em promessas de autoestima, aceitação e
corpos “prontos para o verão”.
Essa banalização
é preocupante por vários motivos. Primeiro, porque o uso indiscriminado, sem
acompanhamento médico adequado, pode causar efeitos adversos sérios — náuseas
intensas, perda excessiva de massa muscular, hipoglicemias, alterações
gastrointestinais e até problemas pancreáticos. Segundo, porque a automedicação
leva ao uso de doses e esquemas terapêuticos errados, com resultados duvidosos
e riscos reais. E, por fim, porque o consumo desnecessário cria um cenário
cruel de escassez: pacientes que realmente precisam ficam sem acesso aos
medicamentos por causa da corrida estética.
Estamos diante
de um paradoxo. Finalmente, a medicina dispõe de ferramentas eficazes para
tratar a obesidade com embasamento científico — e justamente agora, essas
ferramentas são reduzidas a modismos. O mesmo aconteceu no passado com
antibióticos, hormônios e até antidepressivos. O que está em jogo aqui é uma
confusão entre saúde e aparência, entre prescrição médica e desejo social.
A chegada do
Mounjaro deve ser celebrada pelos profissionais da saúde e pelos pacientes com
indicações clínicas bem definidas. Mas é também um momento de reflexão coletiva.
Precisamos falar com mais clareza sobre o que é obesidade, sobre o que é
tratamento e sobre o que é pressão estética. Precisamos, sobretudo, parar de
transformar cada nova descoberta da medicina em um novo produto da indústria da
vaidade.
Emagrecer não é
pecado. Mas transformar remédio em cosmético é, no mínimo, um grave erro ético
e de saúde pública.
*Gustavo
Lenci Marques é médico cardiologista, pós-doutor em Ciências da Saúde,
professor de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e
especialista da plataforma de Carreira Médica PUCPR.

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