Recém-lançado álbum Mangundi, de João Parahyba, ganha versão em vinil, já à venda
| Foto: Divulgação |
Aos 75 anos, percussionista do Trio
Mocotó celebra seis décadas de carreira em álbum que costura samba, jazz, baião
e a polirritmia afro
Lançado no final
de outubro em todas as plataformas digitais, Mangundi, novo
disco solo de João Parahyba, compositor e percussionista e um dos fundadores do
lendário Trio Mocotó, ganha agora versão em vinil pelo Selo Vitrine, gravadora
independente paulistana com especial enfoque na difusão da música instrumental
brasileira contemporânea. O disco está à venda em lojas físicas e no site do selo Vitrine e o valor é R$
190.
Mangundi rompe um hiato de 14 anos desde o lançamento
de O Samba em Ritmo de Jazz (Selo Sesc, 2011). João
Parahyba concluiu em julho de 2025 os registros de seu novo álbum
autoral, composto de 8 temas inéditos.
Por Marcelo Pinheiro
Registrado ao
longo de 90 horas no estúdio Casa da Lua, com o produtor Janja Gomes no comando
da engenharia de som e Paulo Serafim à frente da masterização, Mangundi empresta
seu título de uma expressão que remete à infância do artista no Vale do Paraíba
e tem o sentido de “misturar” coisas inusitadas. Procedimento que, na profusão
de gêneros e polirritmias presentes no álbum – um amálgama entre jazz, baião,
samba, funk e bossa-jazz–, sugere a síntese de uma espécie de manifesto musical
construído a partir das memórias de formação, das vivências musicais e das
referências artísticas e espirituais do percussionista, como a influência da
cadência de matriz afro-religiosa, elementos que compuseram a personalidade
musical singular de João Parahyba, que é também Ogan no Camdomblé e na Umbanda
desde o começo dos anos 1970, por influência de Vinicius de
Moraes.
“Eu já procurei
muitas vezes descobrir a etimologia dessa expressão, e tenho a suspeita de que
ela tenha origem afro-brasileira, mas sei que desde criança eu escutava o
pessoal dizendo que ia fazer um ‘mangundi’ quando queria falar de misturas
inesperadas. Ou seja, Mangundi é também um resumo da minha
história. Nasci numa fazenda no Vale do Paraíba, convivi, na minha infância,
com pássaros, macacos e outros bichos da floresta às margens do Rio Paraíba,
onde também fui capturado pela musicalidade do jongo, pelo cateretê, pelo
catira, pelas Folias de Reis. Ao mesmo tempo ouvia muita música clássica com
minha avó. Liszt, Debussy, Ravel, Chopin. Fui crescendo com essa mistura de
informações”, explica João.
Mangundi em detalhes
Com direção
musical e arranjos do saxofonista Jota P. Barbosa, integrante do grupo de
Hermeto Pascoal e que foi convidado por João para dividir a autoria de seis
temas do disco, Mangundi ainda conta em sua instrumentação
com a banda formada por Fernando César (piano), Cléber Almeida (bateria), Giba
da Silva Pinto (baixo) e Rafael Kabelo (guitarra).
“Jota P e eu
tivemos um diálogo intenso na hora de definir os arranjos, e ele criou coisas
tão bonitas para orquestrar minhas músicas que eu só podia dizer pra ele: ‘Bicho,
agora você assina comigo!’. Eu sou muito ético nesse ponto. O Jota P,
principalmente pela experiência do trabalho que ele tem com o Hermeto, é um
músico muito perfeccionista. Eu sou o oposto dele, e deve ser por isso que a
coisa deu tão certo. É a velha história: os opostos se atraem”, brinca
João.
O
álbum traz também participações especiais de Nereu Gargalo, o magistral
pandeirista do Trio Mocotó, presente em Xei Lá Town, que também
conta com a levada samba-rock do violão de Janja Gomes; Jorginho Neto, que
sopra o grave de seu trombone em Forró World; a flautista Morgana
Moreno, que enche de sutilezas a irresistível Bolo de Fubá; o
trompetista Luiz Gabriel, prese nte em Caramujo, e Mestre Dinho
do Morro do Querosene, que imprime o ritmo hipnótico de seu berimbau no tema de
abertura, Afrodunja, uma homenagem de João a seu saudoso amigo
Suba, o produtor sérvio Mitar Subotić (1961 – 1999). Em quatro composições, o
toque sofisticado do bandolinista Carrapicho Rangel imprime sutilezas
harmônicas aos temas.
“Já toquei free
jazz, já fiz loucuras, mas jazz pra mim é uma coisa mais aberta, algo que vem
da tradição de artistas como Duke Ellington e de uma turma mais velha que
defendia a música como uma expressão livre de seus sentimentos. Movido por esse
pensamento, depois de avaliarmos cerca de 40 composições que eu escrevi nos
últimos 15 anos, eu e o EB escolhemos oito temas que foram arranjados pelo Jota
P. Além dele, eu chamei vários amigos pra formar a banda, dois deles tocam
comigo no Trio Mocotó, o Fernando e o Giba”, explica João.
Com produção
executiva de Eduardo Barreto, o DJ EB, produtor, beatmaker e fundador do Selo
Vitrine, o álbum tem arte gráfica criada por Zoran Janjetov, quadrinista sérvio
apresentado a João por Suba e reconhecido por ilustrar duas criações em HQ do
cineasta Alejandro Jodorowsky: Antes do Incal e Os
Tecnopadres. Colaboração que reitera o caráter personalíssimo e o trabalho
artesanal das intenções da gravadora.
“Quando
criei o Selo Vitrine, minha ideia era contribuir para movimentar e documentar a
cena contemporânea de música instrumental brasileira e também poder homenagear
em vida os músicos que ajudaram a pavimentar esse caminho. Ter a oportunidade
de lançar um trabalho inédito de um artista da dimensão do João é, para mim, um
orgulho gigantesco. Não consigo imaginar como seria a música brasileira sem a
influência do encontro entre o Trio Mocotó e Jorge Ben. A levada percussiva que
o João criou é algo único e sem precedentes”, defende EB.
Aos 75
anos, João Parahyba se prepara para celebrar, em 2026, 60 anos de uma carreira
cujo marco zero foi a contratação para atuar como percussionista do antológico
bar O Jogral, epicentro cultural e boêmio da noite paulistana do final da
década de 1960, criado pelo compositor Luiz Carlos Paraná. Às vésperas desse
importante marco na trajetória de um artista que sempre prezou pela reverência
a seus ancestrais e pela arte do encontro, Mangundi é também
um álbum que tem como mote a celebração.
"Assim como
em Samba no Balanço do Jazz, fiz uma viagem ao passado para
prestar homenagem aos meus professores dos trios, quartetos e quintetos de
samba-jazz dos anos 1960, eu queria que Mangundi fosse uma
síntese das minhas memórias musicais, da minha vida, e sobretudo que este fosse
um disco feito com amigos, com uma sonoridade muito solta, que refletisse o
espírito livre de uma banda da qual eu não fosse o líder, mas uma banda da qual
eu faço parte.”
Reconhecido
internacionalmente desde os tempos do Trio Mocotó – grupo que fundou n’O Jogral
ao lado de Nereu Gargalo e Fritz Escovão e que acompanhou Jorge Ben Jor em
álbuns históricos como Força Bruta e Negro é Lindo –,
João é considerado um dos arquitetos do samba‑rock. Criador da “timbateria”,
instrumento que atendia às demandas de pouco espaço e redução de decibéis d’O
Jogral, ele também deixou a marca de sua cadência irresistível em álbuns e
shows de Gal Costa, Gilberto Gil, Ivan Lins, Luiz Gonzaga, Paulinho da Viola,
Dizzy Gillespie, Bebel Gilberto, entre outros.
Em abril de
2025, João e Nereu anteciparam a boa nova de que o Trio Mocotó voltaria a cair
na estrada anunciando o cantor, compositor e multi-instrumentista Melvin
Santhana, ex-integrante do Originais do Samba e d’Os Opalas, como sucessor do
legado de Fritz e Skowa. Desde então, o trio tem feito uma série de shows que,
diante da expectativa do lançamento de Mangundi nos palcos,
agora devem dividir a agenda do percussionista. Algo que, para João, serve de
combustível pra vida.
“Música é
emoção”, afirma. “Brinco muito com meus músicos sobre o paralelo entre música e
religião. Nossa religião é a música, e o púlpito é nosso palco. Nossa missão é
transmitir beleza e vibração”, conclui.
Essa dimensão
espiritual do fazer musical é um dos eixos de Mangundi, álbum que
transborda um frescor contemporâneo estabelecido em bases ancestrais. Entre o
improviso e a memória. Entre o afeto e a invenção.
"Mangundi,
por João Parahyba”
“Aos 15 anos, comecei
a frequentar a noite de São Paulo, e como gostava muito de música, fui estudar
bateria com o Rubinho Barsotti, do Zimbo Trio, que volta e meia me convidava
pra dar umas canjas com o organista Renato Mendes. Apaixonado pela música,
tranquei os estudos no Colégio Santa Cruz e comecei a frequentar o Jogral, a
famosa casa noturna do Luiz Carlos Paraná. Ia pra lá quase toda noite, e o
Paraná acabou me contratando para tocar regularmente. Como o som da bateria era
muito alto, improvisei uma minibateria tocando com escovinhas um set de timba,
chimbau e pratos. Com 16 anos, fui acolhido pela nata dos músicos do Rio de
Janeiro e de São Paulo. Fui criado ouvindo grupos com aquela sessão rítmica em
que todo mundo metia o pé, como as bandas do Tito Puente e do Mongo Santa
Maria. Mas as linguagens vão se modernizando e vou me moldando com o passado e
o futuro. Assim como influenciei e fui influenciado por DJs como Marky, Nuts e
Patife, continuo trazendo comigo a ciência e a essência do samba, do forró e da
musicalidade das religiões afro-brasileiras. O compositor, seja ele de canção,
música instrumental ou de trilha, tem a capacidade mágica de transmitir a
beleza que inspira as pessoas a fazerem algo parecido. Assim nasceu o Groove
do Avião. Como se fosse o sample de um DJ, eu peguei um compasso de Água
de Beber pra fazer uma homenagem ao Tom Jobim, meu maior ídolo
musical, uma influência que vai muito além das harmonias e da coisa rítmica
dele porque me identifico muito com o ser humano Antônio Carlos Brasileiro de Almeida
Jobim, assim como me inspiro muito em Guimarães Rosa, que fala de um Brasil
interior que eu conheço bem e que, infelizmente, a maioria dos brasileiros não
conhece. Afrodunja é uma homenagem ao Suba, aos amigos e à
família dele. O título faz referência a um doce sérvio feito de marmelo –
‘dunja’, no idioma deles, significa marmelo. A mistura que faço nessa música
tem muito a ver com a primeira gravação que ouvi do Suba, um remix de Samba
da Minha Terra, na versão do João Gilberto. Ele fundiu esse registro com
elementos de música eletrônica e vocais de bispos de Kosovo. Suba costumava me
dizer: ‘Bicho, compõe sua música do seu jeito e faz tudo do seu jeito’.
Procurei manter a mesma essência nesse novo disco. Faço tudo no meu tempo e não
me deixo levar por essa coisa mercantilista de ter de lançar um disco por ano.
Gravei Kyzumba (1996), um disco do qual tenho muito orgulho,
fazendo tudo do meu jeito, da mesma forma que fiz O Samba em Ritmo de
Jazz. Agora terei a felicidade de lançar o álbum Mangundi em
LP, uma coisa bonita de realizar porque desde 1973 não lanço um trabalho nesse
formato. Ano que vem completo 60 anos de carreira, e toda minha essência está
nesse novo disco.”
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